Histórias do povo da beira de um rio
Maria Inês Portugal
Janeiro de 2014
Costumo
ler e escrever ao mesmo tempo. Confortos tecnológicos disponibilizados pelos
escravos de Jobs. Gosto da modernidade. Escrevo para não morrer. Escrevo porque
assim imagino-me conversando com mais gente. Driblo a solidão ou sou driblada
pelo computador! Engano-me, crendo conversar com meus amigos velhos da aldeia.
Sei que neste
momento estão confabulando na esquina da padaria. Uma esquina da cidade onde
habito tem o nome de “Boca Maldita”. Nos cafundós do Mato
Grosso também tem uma esquina semelhante – é o “Senadinho”- onde o papo rola em torno do mensalão, preçodasoja, joaquimbarbosa,
dacarnedoboi, primeiradama. Nossa
esquina da padaria precisa rapidamente ser batizada! Afinal é lá que os
assuntos tomam consistência na aldeia.
Ai como eu
queria saber!!! o que dizem os aldeões sobre as novidades publicadas pelo
Bajona no “Aqui”? que assuntos foram os mais comentados? quem morreu? e a
ponte? cai já ou resiste aos caminhões de areia molhada? Na aldeia é assim. Os
assuntos correm pelas ruas, quebram nas esquinas e colorem a vida do povo.
Vou jogar
mais fogo nessa palha. Será que o fogo cresce se o assunto é papel, livro,
jornal, poema, romance? Na minha aldeia tem uma cadeia que virou biblioteca.
Será que alguém se interessa por este tema? Será que alguém vai querer discutir
isso nas esquinas? Melhor tocar fogo no jornal... Tá velho mesmo! E mete a
biblioteca na cadeia! Livro velho, cadeia
velho, novela sem graça, nem tem sexo!?
Vou jogar o papo na fornalha da esquina . Quem
sabe rola papo!
Eu nunca me
esqueci daquele dia em que “O Município” foi reduzido a nada, em um
fantasmagórico incêndio na beira do rio, por detrás da igreja! Foi uma
cochiladazinha do Senhor dos Passos e o inferno subiu para os ares! É, foi isso
mesmo! Pareceu coisa do Dêmo! Só pode ter sido! Então tudo virou passado...
Na aldeia
tinha a gráfica & editora. Max&Costa - alguém lembra-se deles? Dois
homens sérios. Simples. Pobres. Educados. Éticos. Eu gostava deles!
Em 29 de
julho de 1969“...nosso “O Município”
completa mais um aninho”. Olha como seu Diretor tratava o jornal!...como um
filho! Um filho pequenino!.- Caraca! O
jornal, naquele ano, comemorava seu próprio aniversário! Cinquenta e cinco
anos.
Diga lá
Trogo!
... “De uma existência tênue,
frágil, sem importunar os vivos, sem desrespeitar os mortos.
Assim somos nós, humildes,
pequenos, porque quem nos vê, só vê o folhetim de quatro páginas, com noivados
e batizados, com alguma morte sentida, com conselhos do Werneck, com
recordações do Tavares, com mordacidade do Frasme e do Remada, com uma ou outra
chorumela da responsabilidade desta direção, e com as notáveis remissões
históricas do nosso H.F Portugal.
Assim somos nós! Poucos veem cada minuto
destes cinquenta e tantos anos de pertinácia de editores pobres e simples que
nunca cedem às ameaças dos grandes e nem batem palmas ao aplauso dos pequenos.
Só mesmo um fino manejo de
convivência pode manter um jornal das proporções do nosso, assim tão presente,
tão contínuo, tão sem desfalecimentos.
Somos a história de Rio Preto. O
que Rio Preto é e for, nós o somos e seremos.
Somos possivelmente o único
jornal no Brasil com existência tão longa e tão regular, com objetivos
suicidamente desinteressados e com interesses desentranhadamente amadoristas.
Podemos dizer com orgulho, não
há jornal no Brasil com a independência do nosso, pois, somos o único que não
vive de assinantes, por tantos e tão longos anos.”
A mesma voz de diretor retoma o assunto seis
anos depois. Descreve suas colunas. Classifica-o de roscofe. Quanto censo
crítico! Quanta dureza, Pai! Seu jornal estava antenado com a imprensa
internacional. Até discutia psicanálise!? Estou falando sério!!! A grande
imprensa brasileira vivia sob o tacão dos anos de chumbo. Mas noss”O
Município”, era sobretudo consciente, o
porta-voz das tristezas e alegrias de um povo. Do tamanho de nosso povo! Dimensão do nosso afeto!
“Duas folhas. Quatro páginas.
Quinzenal. Rio, São Paulo, Belo Horizonte. Volta Redonda, Santa Rita. Qual
tiragem? Mil e tanto. Jornalzinho roscofe. Dá aniversário. Mortes. Fala de uma
ponte no Funil e das contas da Prefeitura. Editais da Comarca. Propaganda da
Mercearia Progresso. Publica a lista de ouro. Informações da ACAR. Reuniões da
Cooperativa. Memórias do Tavares. Discurso do João Duque. Divórcio do tempo em
que Décio era menino. Pingo de notícia. Esporte. Cartas de deputado. Estrada
Rio Preto-Juiz de Fora. Devaneios literários. Este é o miolo do jornal.
Nabor e Max todo dia se fundam
ali, por detrás da Matriz, nas velhas oficinas de “O Município”. Labuta humilde
e intransigente. É a cara feia de um chefe político que se sentiu ofendido com
esta ou aquela notícia. É o preço do papel. É o atraso dos assinantes. São as
dificuldades do correio, dos colaboradores. É duro dizer que tal artigo não dava
prá ser publicado. E aqueles que querem tirar sardinha com a mão do gato?
Querem ver uma denúncia publicada, mas cadê que assinam...
É “O Município”.
Sexagenário!Cumprindo seu destino pequenino.
Se ele é pequeno, a culpa não é
dele... Um jornal é a alma de um povo! E um povo é do tamanho de seus ideais.
Nós riopretanos não podemos
transmitir aos estranhos a importância do nosso jornal. Não podemos dizer a
eles porque, interrompemos o almoço, o programa de televisão, a conversa e
jogamos de lado “O Globo”, o “Jornal do Brasil”, quando chega “O Município”. É
questão nossa... questão muito nossa “O Município” é a quentura destas poucas
ruas transitadas de Melos, Monteiros e Maias, Duques, Pereiras e Limas. É o
povo embebido de seu passado. As lutas. Os ódios. As estórias... Os Portugais,
os Guimarães, os Ferreiras. O povo, este misterioso povo... Lembra-se do
“Tides” seu Joaquim Simões? O Pe Gomes?
Os sinos da Matriz. As festas de
Santa Terezinha. Os dobrados da “Lima Santos”. As manhãs de azul e branco dos
dias letivos. O centenário. Os nossos mortos... Isto é “O Município”!
Pequenino! Humilde! Do tamanho de nosso povo! Dimensão do nosso afeto! Ele é o
testemunho de nossas tristezas e nossas alegrias...
Cunha & Costa, como
possessos, cumprem o destino do jornal. Fazem um jornal. Registram a história
de um povo.” (O Município, 15/08/1975)
O Município
nasceu em 14 de junho de 1914 tendo como fundador o Dr Luiz Antônio da Costa
Carvalho. Portanto, na edição de 25 de julho de 1970 comemoravam os 56 anos de
sua fundação, reafirmado heroicamente:
“...Os instrumentos de que os
homens dispõem devem ser reunidos para o bem e para a sua prática. Cremos que
este periódico tem [se] batido para o bem, para a sua prática, pelo bem estar
do riopretano pelo progresso do Rio Preto.”
- Amém nós todos, Max & Costa!
EU paro um
pouco. A emoção me sufoca. Vivi nesta aldeia. Sinto falta dela! Cresci vendo Seu Max, Seu Costa e o Nabor trabalhando naquela velha tipografia. Montavam
o jornal e outros trabalhos gráficos letrinha por letrinha, com tipos móveis,
reunidos manualmente como no tempo de Gutemberg. Até convites para enterro eram
feitos na gráfica d’O Município. Não havia computador, mas gavetas de fontes.
Alguém sabe o que é clichê? O
maquinário em ferro. E nenhum trabalho solicitado sofria qualquer atraso na
entrega. Já pensou se os convites para os enterros não fossem entregues na hora
certa, Nabor?
Eu desafio nossos
aldeões viventes de hoje. Vamos resgatar esta memória?
Isso é fazer
História. É História de Rio Preto. É a História da imprensa, História do
Brasil; são fragmentos da história da Humanidade. Ler “O Município” mesmo que
em frangalhos é como jogar “puzzle”- quebra cabeça, com nossas vidas passadas.
Falta uma pecinha aqui, sobra uma pedrinha ali. Mas aos poucos a gente recompõe
uma bonita paisagem social.
E cada um de
nós pode jogar, se quiser: É só remexer nossas gavetinhas, encontrar números do
jornal, ali esquecidos. Por que entregar nossas vidas passadas à sanha dos
ratos e das enchentes! Vamos juntá-los e recuperá-los. Podemos reproduzi-los
com a tecnologia disponível hoje... podemos reeditá-los, disponibilizá-los em
forma digital ou mesmo em papel... alguém pode organiza-los...
Quem se
habilita?
Vamos juntos
recolher os pedacinhos de uma história de Rio Preto? Se você tiver um pedacinho
d’O Município participe do jogo. Coloque-o em um envelope, escreva seu nome,
diga se é doação ou empréstimo e deixe-o na casa do Sr Rodney.
Quem somos
nós, afinal?
Que maravilha de texto! Até eu que não sou de Rio Preto queria ter um pedacinho d' O Município para deixar na casa do Sr. Rodney... Bela proposta!
ResponderExcluirMaria, posso publicá-lo numa Revista on line que possuo?
daufen bach.
https://www.facebook.com/daufen.bach1
http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/
Uai! Daufen! Para mim, é uma alegria recolher tanto estímulo. Como disse, escrevo para não morrer. Se minhas escrivinhações ultrapassam os limites de minha aldeia, fico feliz.
ExcluirA apresentação do Paulo Pitaluga muito me honra. Sou um pouco mato-grossense depois de vinte e tantos anos na UFMT. Leve meu pedacinho d'O Município para o seu mundo...
Oi Maria! Eu adorei o teu texto, me emocionou...
ExcluirObrigado por me permitir a publicação!
20 anos de UFMT!? Creio que tu é mais Mato-grossense que muitos por aqui...risos.
Eu estou aqui há 16 anos, mas não em Cuiabá, estou no norte de Mato Grosso, na divisa com o Pará...
Abração grande pra ti viu!
(quando sair a publicação, te comunico)
Ai Mip, no meio dessa correria de São Paulo, muitas coisas deixam de ser vividas, naturalmente. É tudo tão frenético..
ResponderExcluirAgora parei para ler um texto seu, o que fala de "O Município". Me ajudou a respirar.
Gostei muito. Você tem um olhar atento. É delicada com as pessoas e com as coisas simples. Sabe dizer o que é importante de se dizer. Me comovo mesmo com seus textos. E aprendo sempre.
Aparecida Cunha Êh texto gostoso! Dá saudade! Quanta lembrança boa.
16 de janeiro às 16:15 •
Maria Inez Aragão Aragão Dindinha gostei muito do texto.
16 de janeiro às 18:46 •
Ducarmo Rosa Adorei o texto e é muito bom publicar aqui. A gente lê na hora. Infelizmente não temos mais nenhum exemplar do "O Município" , como você mencionou...as enchentes não permitem que guardemos muitas coisas.
16 de janeiro às 19:35 •
Ana Maria Macedo Mello Quantas lembranças.... Que texto..... lindo!!!!!
16 de janeiro às 23:10 •
Aparecida Cunha Pena mesmo Maria Inês, como Ducarmo disse, com o problema das enchentes, fica impossível guardar muita coisa. Aqui em casa não temos nada, mas pode ter certeza de que se por acaso acharmos algo, será entregue a você.
17 de janeiro às 07:03 •
Nilvan Bajona Boas recordações Inês. Valeu!
17 de janeiro às 21:03 •
No mundo dos Não-Lugares, Marc Augé escreveu que, para que um espaço seja um LUGAR, ele precisa propiciar Relação, Identidade e História. Sua provocação vai nesse sentido, o de constituir Lugar! Seu texto é necessário, acima de tudo. Que muitos leiam, que a padaria continue sendo um Lugar e que você continue escrevendo... Parabéns também pelo estilo do texto. Célio
ResponderExcluirOlha, não consegui parar de ler... Adorei! Também tenho um pedacinho do jornal guardado e datado pelo Papai que fala do nascimento das gêmeas! Vou escanear e quem sabe com os recortes poderemos fazer hipertextos com "O MUNICÍPIO", hein? É só uma ideia! Manda pra Regina e Mateus também. Beijo grande, Luda
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